top of page

A última sessão de Freud



Fui no último sábado assistir no Teatro Bravo à peça "A última sessão de Freud", um êxito de crítica e público, tendo sido vista por quase 40 mil pessoas até aquela data.


Baseada no texto de Mark St. Germain, dos Estados Unidos, a montagem é dirigida por Elias Andreato. A começar, a cenografia cria um clima muito próximo da casa cheia de livros e antiguidades onde Freud morou de 1938, quando deixou seu apartamento na Berggasse 19 em Viena, fugindo dos nazistas, e se instalou no norte de Londres.


Ambas casas se tornaram museus dedicados ao pioneiro da psicanálise. Eu já visitei as duas, mas para mim a residência de Londres é muito mais atraente, pois ele conseguiu levar seus pertences para lá, como o famoso divã. Cuja cobertura na peça, aliás, deixa a desejar se lembrarmos o magnífico tom avermelhado do tapete que recobre o divã original.


O texto da peça é muito bem escrito e se passa no dia em que a Inglaterra declarou guerra à Alemanha, 3 de setembro de 1939. Entre uma ida e outra para ligar o rádio e ouvir as notícias e o discurso do então rei George VI, o pai da Rainha Elizabeth II, Freud recebe a visita de C.S. Lewis, o professor universitário, crítico e autor de "As Crônicas de Nárnia". Trata-se de uma liberdade poética, pois o encontro não ocorreu de fato.


Tenho miopia e astigmatismo, mas Odilon Wagner, que interpreta muito bem Sigmund Freud, por vezes me dava a impressão de estar vendo de longe o pai da psicanálise -- ilusão que foi interessante. Não por acaso, Wagner foi indicado ao Prêmio APCA 2022 pelo papel. Lewis é interpretado por Cláudio Fontana, que não se sai mal também.


O mote da peça é o debate imaginado entre Freud e Lewis. O primeiro se entendia como ateu, embora tenha sido nascido em família de tradição judaica e exposto ao catolicismo por influência de sua babá na infância. E ao final não se considerasse um alemão, mas um judeu. Já o segundo seria um ex-ateu "convertido", isto é, defensor da fé desde que baseada na razão.


Para mim, a questão teológica, que é o aspecto mais apontado da peça, é menor se comparado com a beleza da confrontação analítica que ocorre entre os dois. O texto habilmente destaca o diálogo cheio de inconsistências e paradoxos nas falas de cada um, que o outro habilmente aponta. Como de fato ocorre numa sessão de terapia, se bem que este traço seja sempre mais enfatizado do lado do terapeuta em direção ao cliente -- até porque o primeiro tem o treinamento para lidar com o inconsciente. Embora saibamos que no final das contas o que de fato tem o potencial de curar, no sentido de cuidar, é o encontro, neste caso analítico.


E entre estes desnudamentos de ambos lados, vemos as vulnerabilidades de Freud serem expostas, como manter seu hábito de fumar mesmo depois de 30 cirurgias para cuidar do câncer de laringe que se espalhou por sua boca e consumiu seu maxilar.


Os diálogos introduzem personagens importantes muito presentes em sua ausência, como a filha de Freud, a psicanalista Ana, que cuidou do pai em Londres. E Max Schur, o médico e amigo de Freud que acompanhou seu suicídio assistido, ao injetar a pedido de Freud e com anuência de Ana uma dose maior de morfina 20 dias depois deste em que ocorre a peça, em 23 de setembro de 1939.


Em busca para escrever este texto, me deparei com a única entrevista gravada de Freud, para uma entrevista dada à BBC nos jardins da casa que a peça mostra, em 7 de dezembro de 1938. Na época, o câncer de Freud já estava pronunciadp, o que podemos perceber pela evidente dificuldade com que ele fala. Clique aqui para ouvir.


E também me deparei com esta tradução em português da última entrevista que ele concedeu ao escritor George Sylvester Viereck (que está na íntegra em “Glimpses of the Great”, de 1930), republicada em “A Arte da Entrevista", organizado por Fábio Altman (Scritta 1995), que está disponível no Portal Geledés. Dela, destaco a frase de Freud: "Uma ou duas vezes encontrei um ser humano que quase me entendeu. O que mais eu posso querer?". Clique aqui para ler.


Monica Martinez

Verão de 2023





Comments


©2020 por Monica Martinez. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page