top of page

Em busca de sentido



As chuvas de janeiro de 2022 e a cautela em relação à nova onda de Covid já me permitiram baixar um pouco minha pilha de livros “para ler”. O que comento aqui hoje me havia sido recomendado com entusiasmo por vários colegas de diversas áreas, da economia à psicologia.


Em busca de sentido (Editora Sinodal/Vozes, 2021), atualmente na 52ª. edição, é um daqueles livros para se ter impresso em papel (até onde sei, a versão digital só é disponível na edição em inglês, Man's search for meaning – ver abaixo), sublinhar várias passagens e deixar na cabeceira para consultar nos momentos difíceis.


Escrita em 1945, trata-se de um relato autobiográfico do neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl (1905-1997). No campo dos estudos de Jornalismo Literário, chamaríamos de ensaio pessoal, a saber a “discussão de um tema à luz da reflexão do autor” (LIMA, 2009, p. 431).


De forma mais precisa, se trata do relato do prisioneiro no. 119.104. Na guerra, como algumas vezes na vida, se despersonaliza o humano para se poder cometer as atrocidades. O que me lembra a memorável cena do filme A gloria de um covarde, do grande cineasta John Houston (1951), no qual o jovem combatente da Guerra Civil Americana perambula distraído ao luar e, do outro lado do rio, seu oponente o alerta a se mancar, pois se continuar dando mole daquele jeito terá de abatê-lo. O jovem agradece e sai rapidamente da vista do outro.


O livro de Frankl é dividido em três partes. A primeira, “Experiências num Campo de Concentração”, ainda hoje, é de nos deixar nauseados e é sobre ela que falarei mais aqui. Não traz ainda os números absurdamente grandiosos de mortes da Segunda Grande Guerra. Antes, traz a brutalidade das pequenas grandes torturas e a magnanimidade dos grandes pequenos gestos no cotidiano dos campos de concentração de menor porte.


Acima de tudo, do ponto de vista psicológico, reflete sobre a atitude dos sobreviventes, que lhes leva a seguir em frente quando em alguns casos, literalmente, nada mais resta. É uma obra difícil de tirar excertos, pois estes podem ser lidos de uma maneira fria ou à guisa de um livro de autoajuda, o que a obra não é. Mas lá vai.


O primeiro é em relação ao sofrimento. No mundo de busca frenética da felicidade que vivemos, é tocante uma obra que aborda que o sofrimento faz parte da vida. O que faz a diferença é o significado que atribuímos a ele. “Uma vida cuja sentido depende exclusivamente de se escapar com ela ou não e, portanto, das boas graças de semelhante acaso – uma vida dessas nem valeria a pena ser vivida” (FRANKL, 2021, p. 90).


Outra parte tocante da obra é a importância do futuro nesta atitude de sobrevivente – termo que hoje empregamos acertadamente para várias outras brutalidades da vida contemporânea, dos abusos aos deslocamentos forçados. Para Frankl, ter algo ou alguém para o que voltar está diretamente ligado a não sucumbir interiormente, nem decair física e psiquicamente. “Quem não consegue mais acreditar no futuro – seu futuro – está perdido no campo de concentração” (FRANKL, 2021, p. 98). E a noção de futuro, como sabemos, foi uma das estruturas mais abaladas na contemporaneidade.


Frankl mesmo se apoiou na imagem de sua mulher. Do ponto de vista junguiano, poderíamos até dizer que seria sua ânima (ânimus para mulheres), mediadora intrapsíquica que faz a ligação entre o eu de uma pessoa e sua vida interior, proporcionando uma compreensão mais profunda do mundo inconsciente dela (HOPCKE, 2012, p. 105).


Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio, vadeando pela neve ou resvalando no gelo, constantemente nos apoiamos um no outro, erguendo-nos e arrastando-nos mutuamente. Nenhum de nós pronuncia uma palavra a mais, mas sabemos neste momento que cada um só pensa em sua mulher. Vez por outra, olho para o céu onde vão empalidecendo as estrelas, ou para aquela região no horizonte em que assoma a alvorada por trás de um lúgubre grupo de nuvens. Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal. Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo; e – tanto faz se é real ou não a sua presença – seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol está nascendo (FRANKL, 2021, p. 55).


Naquele momento, a esposa de Frankl já havia sido assassinada em um campo de concentração, como toda sua família o seria. Mas esta imagem funciona como poderosa alavanca para ele. Da mesma forma, outras imagens vão mover outros prisioneiros. Para um é o filho no exterior, para o qual quer voltar. Para outro, a pesquisa inacabada, que quer concluir. Frankl torce a colocação da tradicional pergunta pelo sentido da vida. “Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós” (FRANKL, 2021, p. 101).

O que mais me tocou na obra foi sobre como, quando em situações em que não podemos mudar, somos desafiados a mudar nós mesmos. O exemplo dado por ele:


Certa vez, um clínico geral de mais idade veio consultar-me por causa de uma depressão muito profunda. Ele não conseguia superar a perda de sua mulher, que falecera fazia dois anos e a qual ele amara acima de tudo. Bem, como poderia eu ajudá-lo? Que poderia lhe dizer? Abstive-me de lhe dizer qualquer coisa e, ao invés, confrontei-o com a pergunta: “Que teria acontecido, doutor, se o senhor tivesse falecido primeiro e sua esposa tivesse que lhe sobreviver?” “Ah”, disse ele, “isso teria sido terrível para ela; ela teria sofrido muito!” Ao que retruquei: “Veja bem, doutor, ela foi poupada desse sofrimento e foi o senhor que a poupou dele; mas agora o senhor precisa pagar por isso, sobrevivendo a ela e chorando sua morte”. Ele não disse uma palavra, apertou minha mão e calmamente deixou meu consultório. Sofrimento de certo modo deixa de ser sofrimento no instante em que encontra um sentido, como o sentido de sacrifício (FRANKL, 2021, p. 137).


Difícil dizer o que move as pessoas, salvo que o que se atribui importância vai variar para cada indivíduo. Quando fiz uma pesquisa sobre obituários na Folha de S.Paulo (MARTINEZ, 2013), nunca me esqueci de um texto primoroso escrito pelo talentoso jornalista William Vieira. Era sobre um sobrevivente de campo de concentração que havia emigrado para o Brasil. Apesar de ter todo o dinheiro para comprar o que quisesse, o que lhe era mais caro era ter frutas à mesa no café da manhã. Aquele era, simbolicamente, o mais importante para alguém que havia lutado pela vida migalha a migalha de pão.


Depois que foi libertado do campo de concentração, ao final da guerra, Victor Frankl foi o idealizador da terceira grande escola de psicoterapia de Viena, a Logoterapia. A primeira, como se sabe, foi a da Psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939). A segunda a da Psicologia Individual de Alfred Adler (1870-1937). Poderíamos sintetizar, de forma simples, a proposta destas três escolas respectivamente de busca do sentido (Frankl), busca do prazer (Freud) e busca do poder (Adler), para fins de comparação.



Referências


FRANKL, V. E. Em busca de sentido. 52. ed. São Leopoldo / Petrópolis: Sinodal / Vozes, 2021.

HOPCKE, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

HOUSTON, J. A glória de um covarde. Estados UnidosMGM/Warner, , 1951.

LIMA, E. P. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 4. ed. São Paul: Manole, 2009.

MARTINEZ, M. Uma questão de estilo: estudo dos obituários da Folha de S. Paulo. Comunicação & Inovação, v. 14, n. 26, 13 jul. 2013.


SERVIÇO

Livros



Filmes



35 visualizações

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page