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O sentido profundo do sofrimento


Numa entrevista publicada no Jung Journal Culture and Psyche, o psicanalista junguiano Robert Stein declara: “A individuação(...), que é o conceito central de desenvolvimento de Jung, é descrita aqui como uma maneira de assumir o sofrimento de uma forma mais profunda, sem evitá-lo ou escapar dele”, diz Stein a Henderson (HENDERSON, 2010, p. 96).

Outro psicólogo conhecido por trabalhar a questão do sofrimento é o austríaco Viktor Frankl (1905-1997). Ele é o fundador da terceira escola vienense de psicoterapia, a Logoterapia e Análise Existencial (as outras duas escolas são a freudiana e a adleriana). E forjou sua teoria como prisioneiro de campo de concentração na Segunda Guerra Mundial.


Uma busca exploratória do termo “Viktor Frankl” no Google Acadêmico, realizada em 22 de maio de 2022, revela 29.900 resultados. Se consultarmos novamente esta ferramenta que realiza busca em trabalhos científicos, desta vez somente para trabalhos em português, ainda assim o número é expressivo: 2.560 resultados. Pode-se argumentar que não seria um número tão desproporcional, se considerarmos que o neuropsiquiatra austríaco viveu de 1905 a 1997, portanto esteve na arena dos debates do campo até um quarto de século. Assim, realizamos nova busca, desta feita dos trabalhos em português dos últimos cinco anos (período de 2018 a 2021), que é o mais importante do ponto de vista de revisão de literatura, encontramos 987 resultados. O que sugere que a proposta de Frankl, intitulada Logoterapia e Análise Existencial, parece seguir viva e forte entre os estudiosos de psicologia e áreas afins.


Contudo, quem foi Viktor Frankl e como sua experiência levou à criação da terceira escola vienense de psicoterapia? É sempre interessante situar que as duas outras são importantes e vigorosas até hoje em dia: a psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939) e a psicologia do desenvolvimento individual de Alfred Adler (1870-1937).


Frankl, é verdade, ainda jovem esteve em contato com Sigmund Freud, embora tenha desistido de continuar no caminho da psicanálise devido a um diferente entendimento de fundamentos antropológicos. Ele acreditava na terceira dimensão do ser, a noética, além da biológica e social. Mais tarde estudou na escola Psicologia Individual de Alfred Adler, sendo mentorado por Rudolf Allers e Oswald Schwarz.


Alguns anos depois, Viktor Frankl foi contra uma outra tendência dentro da psicologia, o “psicologismo”, que pressupunha analisar os atos e comportamentos apenas pelo seu viés da origem psíquica, de modo a sentenciar se o conteúdo é valido ou invalido.


Como resposta a esse modo de pensar, Frankl se predispôs a lutar por objetivos mais humanísticos na psicoterapia, e tendo o seu foco no propósito, significados e valores como sendo o que realmente importa neste processo. Desta forma, se distanciou da psicanálise freudiana e adleriana, mas continuou empregando-as para diferenciar sua proposta: a “vontade de sentido” como a motivação humana primária; a busca ativa de orientação ao longo de valores existenciais. Frequentemente comparava a “vontade de sentido” com as psicodinâmicas da “vontade de prazer” de Freud e a “vontade de poder” de Adler.


As ideias teóricas de Frankl resultaram na sua expulsão da escola de Psicologia Individual de Adler. A partir de então, Viktor trabalhou sozinho até que, em 1930, desenvolveu sua própria linha teórica de abordagem psicoterapêutica, denominada Análise Existencial e Logoterapia.


A elaboração do termo Análise Existencial foi assumida a fim de contrastar com a psicanálise. Contudo Frankl veementemente procurou afastar as suas crenças e pressuposições da análise existencial, pois acreditava que a psicoterapia deve ir além da análise da psique com seus instintos e necessidades pessoais, mas atuar no esclarecimento das condições necessárias para uma existência significativa.


No prefácio da edição estadunidense de 1984 do livro Em busca de sentido, o psicólogo estadunidense Gordon Allport (1897-1967), então professor de Psicologia da Universidade de Harvard, é provocativo:


O escritor e psiquiatra Viktor E. Frankl costuma perguntar a seus pacientes que estão sofrendo muitos tormentos, grandes e pequenos: “Por que não opta pelo suicídio?” É a partir das respostas a essa pergunta que ele encontra, frequentemente, as linhas centrais da psicoterapia a ser usada. Num caso, a pessoa agarra-se ao amor pelos filhos; em outro, há um talento para ser usado. e, num terceiro caso, velhas recordações que merecem ser preservadas. Tecer estes débeis filamentos de uma vida arruinada para construir com eles um padrão firme, com sentido e responsabilidade – esse é o objetivo e o desafio da logoterapia, versão da moderna análise existencial elaborada pelo próprio Dr. Frankl (ALLPORT, 2021, p. 5).


Allport não emprega a palavra “arruinada” sem motivo. Em busca de sentido é o relato de Frankl sobre sua experiência como prisioneiro em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Viu sua família ser dizimada: pai, mãe, irmão e esposa morrer nos campos ou nos fornos crematórios destes. A única que se salvou do holocausto foi sua irmã. Como Allport bem coloca:


Como foi que ele – tendo perdido tudo o que era seu, com todos os seus valores destruídos, sofrendo fome, frio e brutalidade, esperando a cada momento a sua exterminação final – conseguiu encarar a vida como algo que valia a pena preservar? (ALLPORT, 2021, p. 5).


O fato é que Frankl não apenas passou por uma traumática experiência. Por meio dela, e das observações que teceu a partir desta vivência, percebeu que tinha algo muito importante a dizer – o que culminou na descoberta da logoterapia.


Allport diz que é impossível não comparar o trabalho de Frankl com o de seus predecessores, uma vez que ele e Freud trataram da natureza e da cura das neuroses. “Freud acentua as frustrações da vida sexual; Frankl, a frustração da vontade de sentido” (ALLPORT, 2021, p. 6).


Ao analisar o relato autobiográfico de Frankl, Allport aponta o que parece ser o caminho que levou à descoberta da logoterapia:


Primeiro surge uma fria e distante curiosidade de saber o próprio destino. Depois surgem estratégias de preservação do que resta de vida, apesar das chances de sobreviver serem pequenas. Fome, humilhação, medo e profunda raiva das injustiças são dominadas graças às imagens sempre presentes de pessoas amadas, graças ao sentimento religioso, a um amargo senso de humor e até mesmo graças às visões curativas de belezas naturais – uma árvore ou um pôr de sol (ALLPORT, 2021, p. 7).


Em seguida, ele aponta o que parece ser o ponto específico da logoterapia que a diferencia das demais abordagens psicoterapêuticas:


Esses momentos de conforto, contudo, não estabelecem o desejo de viver – a menos que ajudem o prisioneiro a ver um sentido maior no seu sofrimento aparentemente destituído de significado. É aqui que encontramos o tema central do existencialismo. A vida é sofrimento, e sobreviver é encontrar sentido na dor. Se há, de algum modo, um propósito na vida, deve havê-lo também na dor e na morte. Mas pessoa alguma pode dizer à outra o que é esse propósito. Cada um deve descobri-lo por si mesmo e aceitar a responsabilidade que sua resposta implica. Se tiver êxito, continuará a crescer apesar de todas as indignidades. Frankl gosta de citar esta frase de Nietzsche: “Quem tem por que viver pode suportar quase qualquer como (ALLPORT, 2021, p. 7).


Interessante notar que, diferentemente de “muitos existencialistas europeus, Frankl não é nem pessimista nem antirreligioso” (ALLPORT, 2021, p. 7). Neste sentido, ele parece estar fortemente ancorado na tradição fenomenológica, no sentido de que se observarmos bem, a vida vai se deixando mostrar.


No “Prefácio do autor à edição de 1984” – portanto quase 40 anos após a publicação –, sabemos pelo próprio Frankl um pouco mais da história do livro Em busca de sentido: “(...) se centenas de milhares de pessoas procuram um livro cujo título promete abordar o problema do sentido da vida, deve ser uma questão que as está incomodando muito” (FRANKL, 2021, p. 9).


O autor lembra que algo mais pode ter colaborado para o impacto do livro:



[...] sua segunda parte, teórica, “Conceitos Fundamentais da Logoterapia”, focaliza a lição que o leitor pode ter tirado da primeira parte, o relato autobiográfico [“Experiências num Campo de Concentração”] , enquanto que esta serve como validação existencial das minhas teorias. Assim, as duas partes dão credibilidade uma à outra (FRANKL, 2021, p. 9).



Ele recorda que não tinha nada disto em mente quando em 1945 escreveu o livro em nove dias, e que inclusive teria publicado a obra anonimamente se não fosse a recomendação de amigos de que ao menos deixasse o nome na página de rosto.


Abordando agora a segunda parte da obra, no qual Frankl aborda os conceitos fundamentais, como o fato de a logoterapia ser uma psicoterapia centrada na busca do sentido. Frankl explica que “se comparada à psicanálise, a logoterapia é menos retrospectiva e menos introspectiva. A logoterapia concentra-se mais no futuro, ou seja, nos sentidos a serem realizados pelo paciente em seu futuro” (FRANKL, 2021, p 123).


Ao mesmo tempo, a logoterapia tira do foco de atenção todas aquelas formações tipo círculo vicioso e mecanismos retroalimentadores que desempenham papel tão importante na criação de neuroses. Assim, é quebrado o autocentrismo (self-centeredness) típico do neurótico, ao invés de se fomentá-lo e reforçá-lo conscientemente (FRANKL, 2021, p. 124).


O próprio Frankl reconhece que se trata de uma visão muito simplificada da terapia. Contudo, ressalta que “mesmo assim, a logoterapia, de fato, confronta o paciente com o sentido de sua vida e o reorienta para o mesmo. E torná-lo consciente desse sentido pode contribuir em muito para sua capacidade de superar a neurose (FRANKL, 2021, p 124).

A seguir, descreveremos o significado do nome logoterapia. No entanto, gostaríamos de destacar como o próprio Frankl situava a logoterapia em relação às duas outras escolas de psicoterapia vienense, como vimos a de Freud e a de Adler, que o precederam:


A logoterapia, ou, como tem sido chamada por alguns autores, a “Terceira Escola Vienense de Psicoterapia”, concentra-se no sentido da existência humana, bem como na busca da pessoa por esse sentido. Para a logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força motivadora no ser humano. Por essa razão, costumo falar de uma vontade de sentido, a contrastar com o princípio do prazer (ou, como também poderíamos chamá-lo, a vontade do prazer), no qual repousa a psicanálise freudiana, e contrastando ainda com a vontade de poder, enfatizada pela psicologia adleriana através do uso do termo “busca de superioridade” (FRANKL, 2021, p. 124).


Ademais, é importante ressaltar que ele criou a logoterapia de modo que a base fosse estabelecida, porém outras ideias pudessem ser acrescentadas a fim de desenvolver sua teoria e tornar mais atual às necessidades do atendido. Sendo assim uma teoria aberta para a adição de ideias de outras abordagens, e por conseguinte aberta ao diálogo com diferentes teorias psicológicas.


Para finalizar, gostaríamos de destacar a importância da compreensão, de forma concomitante, da vida e obra de um(a) autor(a) para melhor compreensão da forma de psicoterapia que ele ou ela propõe. Neste sentido, é extremamente importante a leitura das memórias de Frankl (2010), charmosamente intitulada “O que não está escrito nos meus livros”. Por meio dela, sabemos mais sobre os anos que precedem a experiência como prisioneiro no campo de concentração, bem como os anos posteriores a esta experiência de encarceramento, como seu segundo casamento. Publicada no exterior dois anos antes de sua morte, em 1995, a obra também nos permite saber como o autor compreendia a sua proposta naquele momento:


Parece que o campo de concentração foi minha verdadeira prova de maturidade. Eu não precisaria ter passado por ela – eu poderia ter escapado, conseguindo emigrar a tempo para os Estados Unidos. Lá eu poderia ter desenvolvido a Logoterapia, lá poderia ter completado a obra de minha vida, realizado as tarefas da minha vida, mas não foi isso que fiz. E assim cheguei a Auschwitz. Esse foi o experimentum crucis. A capacidade primordial humana da autotranscendência e a do autodistanciamento, como tanto enfatizo nos últimos anos, foi verificada e validada existencialmente no campo de concentração. Esse empirismo, no sentido mais abrangente, confirmou o “survival value” (para me expressar com a terminologia psicológica americana) que corresponde à “vontade de sentido”, como eu a chamo, ou à autotranscendência – a existência humana que ultrapassa a própria pessoa em relação a algo que não é ela mesma (FRANKL, 2010, p. 114-115).


Frankl termina este trecho da obra citando uma expressão latina, Ceteris Paribus, que significa “todo o resto constante”. Ou como ele coloca: “aqueles mais propensos a sobreviver eram os orientados para o futuro, para um sentido, cuja realização os aguardava no porvir” (FRANKL, 2010, p. 115).


Por Monica Martinez e Victor Moretto Rosa



Para saber mais


ALLPORT, G. W. Prefácio à edição norte-americana de 1984. In: FRANKL, V. E.. Em busca de sentido. 52. ed. São Leopoldo / Petrópolis: Sinodal / Vozes, 2021.

FRANKL, V. E. Em busca de sentido. 52. ed. São Leopoldo / Petrópolis: Sinodal / Vozes, 2021.

______. Logoterapia e análise existencial: textos de seis décadas. Forense Universitária, 2014.

______. O que não está escrito nos meus livros: memórias. São Paulo: É Realizações, 2010.

HENDERSON, R. S. The Search for the Lost Soul. Jung Journal, v. 4, n. 4, p. 92–101, out. 2010.



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